sábado, 7 de fevereiro de 2009

O bom com face de Mau - I

Essa série é dividida em três partes, que, eventualmente, podem ser lidas separadamente.
Dos contos da Perdição:
O bom com face de mau


Sou um anjo com cara de demônio

Sou o bom com face de mau

Sou um anjo em corpo humano

Mente e alma presos neste coro tão profano

Sou um anjo da noite como vários que aqui estão

Sou um que nunca aprendeu a amar e só sofreu por desilusão

Sou um anjo assustado que me abrigo na escuridão

A escuridão é minha casa, a noite é meu mundo

Um mundo de angústia e desilusão

Um mundo que achei que era perfeito, mas que destruiu meu coração...”



Eis que as cortinas se abrem, e a primeira protagonista a invadir esta realidade deturpada de um lugar precário assombrado por tantos sofrimentos guardados é mais alguém que vai infectar a atmosfera da Perdition, pobre criança, se soubesse talvez nem tivesse pisado lá dentro, não teria subido naquele palco de aberrações laçada pelas teias macabras do lugar... O sofrimento, a injustiça, são esses tipos sentimentos que faz com que a Perdition atraia as pessoas certas para tecer sua história como num jogo de estratégia.

O que? Uma criança e um bar adulto não combinam? E daí? O sofrimento não escolhe idade, sexo, condição social, raça, nada.

A pequena mulatinha demorou em conseguir empurrar aquela grande porta, seus braços magros quase não agüentaram, mas ela precisava pedir pelo menos um copo de água, há duas noites que ronda procurando por um lugar abrigado, há duas noites que sua vida havia sido condenada. O som da antiga jukebox soava espectral para a menina, acima das vozes e murmúrios, acima do titilar de copos e arrastar de cadeiras, mesmo que o som estivesse baixo naquela parte do bar, a atenção da menina que sequer atingiu a puberdade foi para a música, ouvindo-a como se fosse a coisa mais bela que já ouvira e a fazia suspirar mesmo que o ar que se passava no momento estivesse impregnado dos charutos de um grupos de homens reunidos ali perto em uma das mesas do lugar.

Seu estômago se contraía dolorosamente, a fazia andar um tanto encolhida, os grossos cabelos negros estavam desgrenhados e seus olhos escuros cheios de olheiras carregavam um tom doentio, ela caminhou discretamente, ninguém lhe dava atenção, ela não se importava, só torcia para conseguir ser vista pelo barman e a este dar pena a ponto de conseguir algo.

Frente ao balcão, na ponta dos pés sujos e descalços ele tentava ser vista, mas o balcão era alto, e daria trabalho subir naqueles bancos redondos e giratórios, já estava desistindo quando uma mão lhe estende um copo cheio de leite. Sem pensar e sem olhar para o doador, na fome infantil ela agarra o copo grande com as duas mãos afundando-se nele em goles famintos que lhe manchavam o buço de branco.

O leite que Dreamer deu à criança estava gelado, mas a menina bebia como se estivesse delicioso, a silhueta alta do homem deixava a garota dentro das sombras. Dreamer estava lá no dia, infelizmente ele teve que estar lá. Era duro saber que nas periferias das cidades ainda existem famílias inteiras que se formam sem registro algum e quando morrem, morrem como se nunca tivessem nascido... Há dois dias atrás, dois indigentes foram enterrados sem lápide, sem nada, como animais, num dia chuvoso de maneira que fazia parecer que os céus protestavam, mas cegos e surdos, ninguém nunca ouvia... Dreamer ouvia...

Suas roupas sempre negras, o andar pelos cantos sempre deram a Dreamer a discrição que precisava para assistir as coisas que faziam o mundo gritar. Foram os pais daquela garota que foram enterrados lá. E esses dois dias foram os dias que a menina demorou em conseguir entender que eles não sairiam mais da terra, mesmo sempre dizendo que nunca a deixariam, que a amavam... Agora ouvia outros dizendo que eles haviam sido levados para o céu, mas por que diabos foram para o céu e ela não pôde ir? Ela ficou dois dias lá esperando, debaixo de chuva e vento de outono, já apresentava sintomas fortes de desnutrição e pneumonia, suas lágrimas secaram. Até que as necessidades vitais a fizeram levantar e procurar abrigo, e assim entrou na Perdition.

Os olhos escondidos por trás do capuz do sobretudo de Dreamer julgavam o futuro da garotinha : roubando pra comer, passando de reformatório em reformatório, voltando às ruas e se tornando uma prostituta para continuar viver, e assim seria vida dela, até pegar uma doença sexualmente transmitida ou tendo alguma overdose, ou mesmo, quem sabe, cometendo suicídio...

Nessa história a Taverna só serviu de ponto de encontro, de cenário crucial... Não foi difícil para Dreamer convencer a garota que com ele havia mais copos de leite e que podia levá-la até os papais dela, e também foi fácil passar com garota por uma saída dos fundos sem que fossem notados.

A pequena entrou sem ser reparada, e saiu da mesma forma.

Era para o estacionamento dos fundos que aquela porta levava, o chão era de terra, havia muitos poucos carros lá, o terreno era fechado por arame farpado, e de grande extensão. O terreno disforme não marcava os passos, uma parede fria em que ele se encostou sob uma sombra, agachado a altura da menina que curiosamente tentava lhe enxergar o rosto por dentro do capuz escuro, ainda com o buço branco de leite, Dreamer a abraçou, seus braços grandes perto da garota envolveram a nuca e cabeça... Lágrimas brotaram por detrás do capuz, e então com um movimento rápido, sem grito, sem lástima, sem piedade, o pescoço da garota é quebrado como de fosse um graveto e ela morre em seus braços, desfalecendo como uma boneca quebrada e sem vida. A promessa foi cumprida.

Dreamer seria um anjo que a salvou de um trágico destino, ou um sádico demônio se alimentando das dores dos outros e roubando mais uma vida inocente? Só se sabe que ele ouviu o grito de seu coração, e a sua morte ele chorou.

Como o mundo pode continuar?

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