segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Dançarina II

Parte 2 do anterior. Como eu disse, esses são divididos em 3, mas eventualmente podem ser lidos separadamente.


– Dançarina -

Xandria – Dancer

“Ela está dançando como o vento
Quase dançando tudo
Todo momento de vida
Ela está me levando com ela
Com a música no coração dela
Fascinação é seu nome
Ela está quebrando todo gelo em mim...”

Dreamer não era nenhuma justiceiro, ele nunca tinha matado por esses motivos, mortes e sombras acompanham ele desde que se entende por gente, então ele passou a compreendê-la muito bem, era como se sua carne fosse feita de sentimentos extremos. Ele não se destacava em nada na sociedade, não era casado, não faz faculdade, não tinha um emprego fixo, tudo o que possuía eram contatos que nem ao menos sabiam seu nome ou seu rosto, Dreamer era um mistério para ele mesmo, ainda procurava uma razão para viver. De volta ao bar, não que gostasse desse tipo de lugar, apenas passou por lá algumas vezes quando resolvia alguns assuntos, sabia o momento certo para os tipos de roupas, e continuar com um sobretudo escuro acabaria por chamar a atenção para si ao invés de repelí-la. A calça jeans era larga, parecia alguns números maior que seu manequim, a blusa branca parecia um tanto amarrotada dando um ar bem magro ao rapaz, o casaco de moleton ainda mantinha o capuz sobre seu rosto sombreando-o junto aos possíveis cabelos negros brilhosos que escapavam em fios que variavam do longo ao curto.
Pessoas estranhas e excêntricas frequentavam àquele pátio de aberrações, conspirações, corrupções, prostituição, tudo acontecendo ao mesmo tempo nas mesas redondas do lugar, a música lamentava ao fundo e o balcão sempre lotado parecia sempre guardar lugar para mais um. Dreamer caminhou olhando para o próprio tênis de cardaço desamarrado, sua língua correndo lenta ao redor do pirulito dentro de sua boca, seus lábios comprimidos ao redor do cabinho e o gosto de morango sintético o acalmava. Logo uma parede o fez parar e encarar por alguns segundos... Mais ao fundo havia um lugar mais reservado, onde prováveis casais iam, ou negociações mais sérias eram realizadas. Dispostos como se fosse uma sala, estavam um sofá e algumas poltronas de couro ao redor duma mesinha baixa de centro que por sua vez ficava ante a uma lareira que parecia estar sempre queimando em brasas e chamas dançantes que lambiam a lenha e dançavam com as sombras nas paredes... Dançar? Um ruído abafado, forte e constante atraiu-se para os ouvidos sempre atentos de Dreamer. Uma porta negra anti-ruído levava para o outro ambiente famoso da Perdition, a balada.
Precisava apagar aquelas imagens ou qualquer sinal de arrependimento que o invadisse, nada melhor que aquele som barulhento e aquelas pessoas pegajosas a dançarem alucinadas... Precipitou-se pela porta, que para ele particularmente teve cara de porta do inferno.
Abanou as mãos na frente do rosto abrindo caminho na fumaça colorida e quente do lugar de paredes escuras, era uma grande boate. Fervia de pessoas dançando, o som eletrônico era envolvente, as batidas pareciam vir do interior de seu corpo, Dreamer não gostava quando esbarrava em alguém, foi ziguezagueando entre as pessoas, como se tivesse sendo puxado pela gravidade, uma atração invisível que o levava ao centro, onde as luzes coloridas, os holofotes, onde a atenção era maior e mais incisiva... As pessoas lhe pareciam muito iguais, mas não podia parar aquela atração e só entendeu quando a avistou...
Lembrou-lhe uma bela bailarina dançando com o vento pelos movimentos que seus longos e ondulados cabelos dourados faziam...Ela dançava, sinuosa, malemolente, David Bowie feito o herói andrógino sideral dos anos 70: Ziggy Stardust, no tórax da blusinha negra, em cristal swarovsky negro furta-cor parecia sorrir aos outros, convidando-os. Mero disfarce da garota, modo de esconder a tristeza.Dançava em torno de seus inúmeros pares, feito uma odalisca, os braços e quadris cortejando os corpos encantados a sua volta. Não poderia ter mais que dezesseis anos, era muito novinha, como deixavam entrar? Usava uma espécie de saia longa de tecido levíssimo, feito à mão, com linhas de seda prateada, em vários tons, formando um intrincado crochê, bordado ainda com perolazinhas rosadas muito ricas. Havia um forro muito fino, transparente, em outro tom mais claro de prata. Foi como se tudo estivesse acelerado e apenas Dreamer paralisado olhando-a em efeito câmera lenta. Quem era? Qual sua história? Teve a impressão que já a conhecia de algum lugar, talvez em seus sonhos... De repente teve uma súbita paixão pelo mundo, um vontade inexplicável de viver que não existia dentro do rapaz sombrio...
Ela se destacava como uma figurinha colorida em um monte branco e preta, ela demonstrava uma aura de glamour única, cores e vibrações que Dreamer achava não existiam mais naquele mundo, um brilho ofuscante longe, bem longe dele, como se fosse outro nível, algo superior... Porque mesmo ao longe, emoldurados por longos e curvos cílios louros estavam os olhos mais expressivos e profundos cor de mel que já vira, e lá tinha uma imensidão de tristeza, e mesmo assim ela cintilava daquele jeito sobre plataformas e saltos incríveis, majestosa como uma rainha.
As pessoas batiam em seu ombro, o empurravam, esbarravam, estavam dançando, e Dreamer continuava ali parado observando... Em alguns minutos de transe ele pôde entender, ele conhecia sim aquela figura, não só de seus sonhos, mas porque era famosa em um certo ramo...
Fascinação era seu nome. Não! Ariel, esse era seu nome, sua perfeita androginia o êxtasiou por um tempo, mas a ausência de importantes curvas, apesar da fina cintura e dos ombros esguios, o fez reconhecer que na verdade, ela era ele, Ariel era um perfeito andrógino de beleza estonteantemente natural e feminina que dançava em boates, esse era seu trabalho. Uma dragqueen prostituta.
Não, falar que Ariel era uma prostituta seria dar informação equivocada, ele dançava, fazia striper, e pequenos trabalhos, deixava que o tocassem e dependendo do cliente, até sexo oral. Mas o mocinho era muito careiro em seus trabalhos, era de luxo, assim falavam e assim Dreamer sabia.
Ficou muito tempo parado no meio da pista, o pirulito em sua boca já havia acabado, só sobrera o cabinho sendo mordido no canto da boca, os olhos por trás da sombra ainda não haviam conseguido desprender-se da figura loira. Dreamer não é do tipo que se atrai pelo mesmo sexo ou que admira tais atitudes, para ele o mundo já era podre demais e cheio de bizarrices infundadas que o tornavam ainda mais sujo, mas Ariel brilhava! De uma maneira diferente... O que será que havia por trás daquele sorriso vindo de lábios tão rubros e macios? Um pena que Dreamer jamais saberia toda a verdade magnífica.
Por várias noites Dreamer voltou a Perdition para ficar parado olhando para Ariel, assisti-o em seu trabalho, em suas conquistas e seduções, em sua dança que funcionava como anfetamina viciando a todos que ali botavam seus olhos, e assim Dreamer se viu, viciado.
Mesmo a promiscuidade, as roupas sensuais, e toda condição herege de Ariel não podiam tirar dele sua meninice, seu ar inocente, seu brilho por mais que no fundo de seus olhos parecesse gritar e seu rosto forçado a sorrir quisesse chorar... Numa dessas noites, Dreamer encontrou Ariel ao balcão da Perdition, seu rosto levemente corado de tanto dançar, a respiração ofegante em baixo de sua roupa espalhafatosa, os cabelos louros e cheios sendo ajeitados pelas pequenas mãos enquanto o barman colocava um grande copo cheio de um líquido cor-de-rosa cremoso, milkshake de morango. Ariel olhou e sorriu para o rapaz de calça jean batida e moletom branco com o capuz espremendo os cabelos escuros de Dreamer. O sorriso que o rasgou em pedaços.
__ Está sozinho? Deve estar, sempre o vejo por aqui sozinho. Não tem um desses pra mim? – A voz do menino ainda carregava o tom infantil de quem não se desenvolveu por completo, quando apontou o pirulito novo que jazia nos dedos de Dreamer, o rapaz pôde ver marcas e cicatrizes em seu pulso e braço.
__Desculpe, só tenho esse. – Dreamer o respondeu, mostrando frieza e indiferença, desviando daqueles grandes olhos amendoados. Ariel arqueou uma sobrancelha e curvou-se sobre o copo sugando barulhento o milkshake pelo canudinho, e lambendo os lábios voltou-se para Dreamer.
__ Ah, que pena. Sabe o que é? Eu podia jurar que você ficava me olhando, certeza de que não quer nada?
__ Ariel, minha vida é um problema, eu não quero o que está pensando, não sou como os seus clientes, não espero nada de você. – Dreamer mantinha a frieza para o menino, queria deixar claro que não aprovava apesar de não cultivar nenhum preconceito com nada. Pois como dizia Oscar Wilde : “Se nem a natureza, com sua gigantesca importância, de que todos sabem, faz distinção entre as pessoas, quem somos nós, meros mortais, para fazê-la?”.
__ Que triste é você, nunca ouviu falar de que a vida é um mistério a ser vivido e não um problema a ser resolvido? Olha, e você sabe quem eu sou! Se você não me bater por eu dizer isso...Bem, eu vou dizer da mesma forma: tenho pena de você, é um mártir. – Ariel disse isso o encarando mesmo que não pudesse enxergar os olhos do rapaz, Dreamer quase teve certeza de que Ariel o enxergava. – Percebi seus olhares, você tem medo do que? Talvez pense tanto no amanhã, que esquece que o mais importante é o presente... Bom, foi legal falar com você, vou trabalhar!
Um homem maduro que às vezes brinca no balanço, uma criança insegura que às vezes anda de salto alto, esse era Ariel pela visão de Dreamer. Ariel impressionou Dreamer, e o rapaz continuou vindo ao bar apenas para observar de longe o jovem travesti dançarino.
Dias, semanas e Dreamer continuava a ir a Perdition observar o jovem, ás vezes até trocavam algumas palavras, o que estranhamente deixava Dreamer animado. Uma criança, era só uma criança com traços de maldade e sofrimento. Dreamer reparou que ele tinha marcas de cicatrizes nos pulsos, como uma auto flagelação, marcas de agulhas no braço indicavam que se drogava, as vezes que via sangue escorrer do nariz do jovem... E mesmo assim ele se destacava com aquela grande vontade de viver. “ As pessoas só conseguem manter a esperança porque seus olhos são incapazes de enxergar a morte.” Concluiu Dreamer.
Mas em todo Epitáfio alguém deve morrer. E esse não vai ser diferente, nada impede a injustiça do mundo.
Lá estava ele, a dançar feito uma bailarina de caixinhas de música, em seu tom mágico e brilhante, e lá estava Dreamer o observando de longe, como um outro dia qualquer.
Ariel parecia negociar seus serviços com um homem grande e corpulento, parecia ter metade do rosto deformado por algum queimadura terrível, e suas roupas não pareciam adequadas para o lugar, Dreamer dobrou sua atenção ali, o cara não só não merecia Ariel como no mínimo morria de inveja de sua beleza e jovialidade. Ariel dançava na frente daquele brutamontes, sorrindo com seu jeito simpático e cativante, ele negou a oferta do grandalhão, e este tornou a insistir. Não, cara, Ariel não faz esse tipo de trabalho! Dreamer pareceu um gato arisco e encoberto andando e desviando das pessoas que dançavam para alcançar uma visão mais perto deles e poder ouví-los melhor.
__Não, moço, eu não faço essas coisas, se quiser, deixo que me toque, ou posso fazer algo para o senhor, mas nada além disso, tá? E custa cem dólares.
__Então a putinha é de luxo? Acha mesmo que eu não posso pagar o suficiente, sua dragqueen suja?
__Não é isso, me desculpe. – Ariel dava as costas a esse para dançar com outros, ele gostava de dançar, e às vezes preferia dançar a noite inteira sem ninguém, dançaria tudo e tanto! Faria seus cabelos dourados virarem luz!E se não se sentisse bem, era só voltar para casa... E deveria ter voltado aquela hora.
O homem era muito mais alto e forte que Ariel, Ariel era pequeno e esguio em sua silhueta andrógina e infantil, era como se exalasse cheiro de frutas doces e frescas...Ou assim parecia a Dreamer. A manzorra do homem puxa Ariel pelo ombro com tanta força que o menino cai no chão sob risadas de uns e outros que dançavam ao redor quase pisaram nele se não fosse o brutamontes que continuou no encalço do jovem. Agarrou-o pelo colarinho da blusa brilhante, arrebentando um bonito colar de pedrinhas ofuscantes, pedrinhas que voaram como se estivessem câmera lenta a frente da cena. O homem arrastaria Ariel para fora da pista, o menino se debatia, mas era inútil. Lágrimas escorreram daqueles bonitos olhos amendoados. Dreamer estava paralisado, olhando a cena de perto, outras pessoas fingiam nem ver.
__Moço, moço oriental, eu sei que gosta de mim, me ajude! Por favor, me ajude! – Ariel berrou para Dreamer que se encolheu surpreso com a visão do menino sobre si. Dreamer não fez nada. E Ariel em prantos lhe deixou um sorriso antes de desaparecer levado pelo homem, um sorriso de perdão. Um sorriso que rasgou Dreamer em pedaços.
Nem é preciso dizer que Ariel nunca mais foi visto na Perdition, e que naquela noite como outra qualquer, sob o mesmo céu de sempre, Ariel fora engolido em sua vez de ser ceifado. Dreamer continuou a ir na esperança de ver o brilho de seus cabelos, seu sorriso sincero, seu perfume extasiante... E quando entendeu que nunca mais veria o mundo em cores, ele chorou. Chorou com seus olhos de oriental que só Ariel tinha visto, chorou como nunca chorara antes. Ele amou Ariel e nunca disse isso a ele, amou sim, e Ariel precisava disso, somento disso, de alguém que o amasse, e morreu sem saber que conseguiu que alguém chorasse por ele. “Todo o tempo tenho vindo aqui, mas agora ele se foi. É tempo de não ter medo da morte.Vamos querido, não tenha medo da morte...Espero que não tenha tido medo.Querido, segure minha mão.Não tenha medo da morte. Nós seremos capazes de voar.Querido, eu sou seu homem...” Se pelo menos tivesse conseguido falar para ele...

Quem era Ariel? Como ele chegou na Perdition? Como ele foi morto? Eu vou contar para vocês, só para vocês, porque o pobre Dreamer jamais soube, e se soubesse, talvez conseguisse ter força suficiente para se mexer e salvar o menino.
Como o mundo pode continuar?

Um comentário:

Anônimo disse...

Dreamer fez exatamente o que todos nós fariamos e perceberiamos apenas quando perdessemos.